quarta-feira, 30 de março de 2022

Exposição conjunta de Tiago Grosso e Luís da Cruz


 3000 horas de Sol / 3000 hours of Sun

de: Luís da Cruz e Tiago Grosso

O título desta exposição adota ironicamente uma frase muitas vezes utilizada enquanto slogan promocional turístico da região do Algarve, que nos remete para o atrativo número médio de horas de exposição solar anual no nosso território. O turismo de sol e praia teve e continua a ter um papel hiperativo na transformação acelerada da nossa paisagem natural, urbanística, social, económica e estética, sendo o seu impacto bem visível na nossa linha costeira. Este #tulo luminoso transporta-nos para um ideário imagético que se encontra associado ao Algarve enquanto lugar de desejo. Praias quase desertas, de areias douradas circundadas por falésias alaranjadas que se erguem perante um mar, ora turquesa, ora esmeralda, algares por descobrir, coloridas embarcações tradicionais de pesca, arquitetura tradicional ordenada e preservada em pequenas aldeias, o lugar idílico onde nos projetamos no nosso precioso tempo dedicado ao ócio. Uma vez por cá, estas imagens exóticas são as que enquanto turistas tentaremos capturar, para mais tarde recordar e para nas redes sociais provarmos que somos merecedores do paraíso.

Para encontrarmos as imagens acima descritas, basta que em qualquer motor de busca escrevamos Algarve, selecionando busca por imagens e ei-las às centenas.

Este não é o tipo de imagens que encontraremos nesta exposição. Os fotógrafos Luis da Cruz e Tiago Grosso têm uma outra relação com o lugar, eles são naturais de Loulé, testemunharam durante as suas vidas as abruptas transformações do Algarve operadas pela industria do turismo. Há muito que utilizam a fotografia como forma de documentar, inquirir, entender essa transformação, uma espécie de longa exposição que lhes permite a construção de uma narrativa de uma outra “realidade”, mais próxima de um espectro invisível, mais próxima da vida como ela é.

Luis e Tiago são artistas com um profundo conhecimento sobre o processo da fotografia, têm uma consciência política e um pendor para mostrar o Algarve por detrás do cenário iluminado por glamorosos holofotes, mostram os bastidores, a sombra de um lugar bipolar, operando a duas velocidades onde o frenesim do verão contrasta com a quietude do resto do ano.

3000 horas de sol é composta por duas séries de imagens de lugares e de pessoas em espaços deslocados ou descolados de um tempo continuo. Estas séries testemunham os efeitos de processos de rápida transformação que os fotógrafos documentaram, como rastos, vestigios, fantasmagorias, como o é a própria fotografia enquanto processo que desloca uma ação para fora do seu tempo sequencial e do seu próprio lugar.

Quase tudo o que nos dão a ver neste conjunto de imagens é político, não no sentido de militância do termo, mas pelas suas tensões, evocações e signos. Também porque nos remetem para assuntos da Polis, da forma como os territórios, as cidades se ordenam, se estruturam e como os habitantes se organizam na relação com o espaço público muitas vezes decidido por atores de outros palcos.

“Praias”, uma das duas séries que constituem esta exposição é de autoria de Tiago Grosso, faz parte de um conjunto de imagens mais alargado que têm vindo a ser captadas continuamente desde há algum tempo e que até agora nunca foram mostradas em contexto expositivo. Um coerente trabalho documental produzido ao longo de anos durante deslocações a várias áreas do Algarve, imagens realizadas com recurso a dispositivos analógicos no formato de 35mm.

“MAR à vista” constitui a outra série, esta recente, ainda que congregue mais de 50 anos de relação de Luis da Cruz com Quarteira. Memórias longínquas de dias passados na praia em família, perante uma vila ainda piscatória em que os barcos se espalhavam nas praias e as modestas casas brancas não tentavam ferir o céu. Hoje, o Luis mantém uma forte relação com a agora cidade de Quarteira, onde desde 2007 leciona fotografia no ensino secundário. A escola é um lugar privilegiado no entendimento das transformações sociais de um lugar. Estas fotografias surgem da necessidade do fotógrafo questionar todo este tempo de relação com as camadas que vão constituindo um mesmo lugar e os seus múltiplos desdobramentos.

Esta exposição pertence a dois fotógrafos com um léxico autoral de grande proximidade. Num primeiro olhar, esta podia passar por uma exposição de um só autor, ou de autores que trabalham enquanto dupla, mas não é o caso. Ambos se interessam por um determinado modo de fotografar, por uma determinada poé8ca das imagens, por lugares não óbvios, por pessoas comuns, pelo Algarve que ninguém quer ver, ou que seja visto. Interessam-se por um determinado lugar da fotografia onde encontramos autores como, o percursor Francês, Eugéne Atget que no inicio do século XX fotografava as menos comuns e desertas ruas de Paris, pela ironia no trabalho de Martin Parr ao documentar o lado ridículo do turismo massificado, o Americano Alec Soth com os seus grandes ensaios de imagens banais do território americano ou a nossa saudosa Patrícia Almeida e o Algarve por ela fabulado na série PortoBello.

Perante estas imagens que cons8tuem este corpo de trabalho “3000 horas de Sol / 3000 hours of Sun”, não podemos ficar indiferentes, os autores oferecem-nos a oportunidade de refletir sobre o nosso território e como com ele nos relacionamos. Que Algarve sonhamos?

Miguel Cheta